
A competência delegada nas ações previdenciárias. Qual o prisma atual?

É sabido que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é autarquia federal pertencente à União, e consequentemente, eventuais ações judiciais propostas em face do instituto são de competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal. Excepcionou-se, contudo, as ações acidentárias que eram processadas na Justiça Estadual.
Contudo, uma vez que a Justiça Federal não possui sede em todas as Comarcas, o §3º, do art. 109 da CF, com a redação anterior a Emenda Constitucional 103/2019, autorizava que as ações previdenciárias e/ou assistenciais fossem processadas na Justiça Estadual.
O §3º, do art. 109 da CF, com a redação anterior a E.C. 103/2019, tinha a seguinte redação:
Art. 109 – […]
§ 3º Serão processadas e julgadas na Justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela Justiça estadual.
O texto constitucional autorizava o ajuizamento de ações previdenciárias perante a Justiça Estadual, como forma de aproximar o segurado/beneficiário da Justiça, em conformidade com o princípio de acesso à Justiça. Isso porque, a maioria das demandas previdenciárias depende de dilação probatória, tornando difícil e custoso o deslocamento para uma sede da Justiça Federal, muitas vezes distante da comarca.
Os Juízes Estaduais, portanto, por determinação constitucional, recebiam, excepcionalmente, competência previdenciária de matéria federal. Agiam por delegação da Justiça Federal.
No entanto, as propostas de reforma da previdenciária sempre buscavam a modificação da referida permissão ou, ao menos, a limitação da delegação autorizada pela Constituição.
A Lei Federal nº. 5.010, de 30 de maio de 1966, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 15, inc. III, atribuiu competência previdenciária federal aos Juízes Estaduais, “in verbis”:
Art. 15. Nas Comarcas do interior onde não funcionar Vara da Justiça Federal (artigo 12), os Juízes Estaduais são competentes para processar e julgar:
[…]
III – os feitos ajuizados contra instituições previdenciárias por segurados ou beneficiários residentes na Comarca, que se referirem a benefícios de natureza pecuniária.
Contudo, a Lei 13.876, de 20 de setembro de 2019, em art. 3º, passou a dispor que:
“Art. 15. Quando a Comarca não for sede de Vara Federal, poderão ser processadas e julgadas na Justiça Estadual:
………………………………………………………………………………………………………
III – as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado e que se referirem a benefícios de natureza pecuniária, quando a Comarca de domicílio do segurado estiver localizada a mais de 70 km (setenta quilômetros) de Município sede de Vara Federal;
………………………………………………………………………………………………………
§ 1º Sem prejuízo do disposto no art. 42 desta Lei e no parágrafo único do art. 237 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), poderão os Juízes e os auxiliares da Justiça Federal praticar atos e diligências processuais no território de qualquer Município abrangido pela seção, subseção ou circunscrição da respectiva Vara Federal.
§ 2º Caberá ao respectivo Tribunal Regional Federal indicar as Comarcas que se enquadram no critério de distância previsto no inciso III do caput deste artigo.” (NR)
O art. 5º, da Lei 13.876, de 20 de setembro de 2019, expressamente estabeleceu que as alterações promovidas pelo art. 3º, apenas entrariam em vigor no dia 1º de janeiro de 2020.
Ocorre que, a Lei 13.876/2019 foi aprovada e publicada na vigência do art. 109, §3º, da CF, com a redação originária e anterior a E.C. 103/2019.
O disposto no art. 3º, da Lei 13.876/2019 não se compatibilizava com a ordem constitucional vigente, embora sua entrada em vigor estivesse programada para 01/01/2020.
A legislação infraconstitucional deve ser compatível, tanto vertical, quanto materialmente, com a ordem constitucional vigente. Na data da publicação da Lei 13.876/2019 não havia espaço para legislação infraconstitucional limitar a competência delegada.
A Constituição Federal é suprema em relação a qualquer ato normativo de hierarquia inferior, conforme ensina Luís Roberto Barroso (2011, p. 300), a saber:
“[…] Como consequência do princípio da supremacia constitucional, nenhuma lei ou ato normativo – a rigor, nenhum ato jurídico – poderá subsistir validamente se for incompatível com a Constituição. Para assegurar essa superioridade, a ordem jurídica concedeu um conjunto de mecanismos destinados a invalidar e/ou paralisar a eficácia atos que contravenham a Constituição, conhecidos como controle de constitucionalidade. […]”
A conformidade com a ordem constitucional deve se dar no momento da publicação da norma infraconstitucional, uma vez que a constitucionalidade superveniente não é admitida pela jurisprudência do STF, senão vejamos:
Ementa: DIREITO TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PROTOCOLO CONFAZ Nº 21/2011. INCONSTITUCIONALIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE NÃO DIVERGE DA JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. PRECEDENTES. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 87/2015. ALEGAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. No julgamento da ADI 4.628, o Plenário da Suprema Corte assentou que o Protocolo Confaz nº 21 subverteu o arquétipo constitucional do ICMS, na medida em que estabeleceu novas regras para a cobrança do imposto que destoam dos parâmetros fixados pela Carta. 2. A conclusão do Tribunal de origem não diverge da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 3. O advento da Emenda Constitucional nº 87/2015 não tornou constitucional o Protocolo Confaz nº 21/2011. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não admite o fenômeno da constitucionalidade superveniente. Por essa razão, o referido ato normativo, que nasceu inconstitucional, deve ser considerado nulo perante a norma constitucional que vigorava à época de sua edição. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(ARE 683849 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 09/09/2016, DJe-208 DIVULG 28-09-2016 PUBLIC 29-09-2016)
Com efeito, por ocasião da publicação do ato normativo questionado (Lei 13.876/2019), não havia espaço constitucional (§3º, do art. 109, da CF na redação anterior a E.C. 103/2019) para limitação da competência delegada, conquanto, sem condições de adentrar validamente no ordenamento jurídico. Não faz sentido justificar a constitucionalidade do ato normativo, sob a frágil alegação de que, após a vacatio legis, já havia ordem constitucional (alterada pela E.C. 103/2019) que autorizava referida limitação. Ante a inconstitucionalidade patente, o ato normativo, naquilo que conflitava, não tinha condições de validamente ser inserida no ordenamento, portanto, inconstitucional desde o nascedouro.
Assim, uma vez que o art. 3º, da Lei 13.876, de 20 de setembro de 2019 é inconstitucional, por não se conformar com a ordem constitucional que vigia no momento de sua publicação, forçoso concluir que, continua vigente o art. 15, da Lei Federal nº. 5.010, de 30 de maio de 1966 em sua redação anterior. Com a declaração de nulidade do ato normativo inconstitucional, repristina-se o regramento anterior.
Enquanto não houver edição de nova legislação, os segurados/beneficiários podem continuar propondo ações previdenciárias e/ou assistenciais perante a Justiça Estadual, quando a Comarca a que pertencem não for sede da Justiça Federal, considerando os fundamentos expostos.
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